FUZIL – Licença para cumprir a lei
Sérgio de Oliveira Netto
Procurador Federal. Mestre em Direito Internacional (Master of Law), com concentração na área de Direitos Humanos, pela American University – Washington College of Law. Especialista em Direito Civil e Processo Civil. Professor do Curso de Direito da Universidade da Região de Joinville – UNIVILLE (SC).
Muito se tem discutido recentemente, se o fato de uma pessoa estar portando (ilegalmente) um fuzil, em alguma área que esteja sendo alvo de operações das Forças de Segurança, poderia justificar, nos termos da lei, a realização do denominado “tiro de comprometimento.” Pelo qual, o Agente das Forças de Segurança, efetuaria um disparo, a longa distância, com o objetivo de neutralizar o criminoso que fosse encontrado portando este tipo de armamento de grosso calibre.
Evitando, assim, uma abordagem perigosa tanto para os próprios policiais e militares engajados na operação, como também para as pessoas da localidade. Que poderiam ser atingidas por disparos, se os criminosos, flagrados nesta situação, não se rendessem, e optassem pelo enfrentamento.
Nesta breve análise, procuraremos demonstrar que, na verdade, a legislação de regência já permite a colocação em prática desta opção operacional. Ou seja, o “tiro de comprometimento.” Não havendo necessidade de modificações legislativas, e sim mera aplicação dos comandos legais já existentes. Mediante a mera mudança de entendimento, acerca dos parâmetros que envolvem a realização de missões policiais/militares de alto risco como estas.
Primeiramente, cabe esclarecer que o porte de armamento como o fuzil semiautomático ou automático, é proibido pela lei para as pessoas em geral. Pois somente os Agentes das Forças de Segurança podem empregar este tipo de armamento. Apenas sendo autorizado o uso de fuzis e rifles (de ferrolho ou alavanca) desta família de calibres pesados, para caçadores, atiradores e colecionadores (CR/CAC) que estejam regularmente registrados no SIGMA do Exército.
Caracterizando, inclusive, crime hediondo o porte deste armamento, nos termos da Lei n° 10.826/03, art. 16, e Lei n° 8.072/90, art. Art. 1°, parágrafo único. Não deixando dúvidas, portanto, acerca do enquadramento infracional desta conduta.
O fato de não haver expressa orientação legal permitindo a realização deste “tiro de comprometimento”, não é impeditivo do reconhecimento da sua legalidade. Posto que esta diretriz de atuação, decorre da conjugação das normas legais regradoras da matéria. Que serão abaixo indicadas, resumidamente.
A Constituição Federal, no seu art. 5°, caput, elencou como uma das garantias fundamentais, a SEGURANÇA (Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à SEGURANÇA…)
O Código Penal (e também o Código Penal Militar), estabelece que os agentes estatais (no caso, da segurança pública), não podem ser responsabilizados pelos atos que praticarem no “estrito cumprimento do dever legal” (art. 23, III). E também preceitua que qualquer pessoa, pode agir em “legítima defesa de terceiro”, não caracterizando crime os atos praticados pelo defensor neste contexto (art. 23, II, e 25).
Apenas para esclarecer, a referida “legítima defesa de terceiro”, nesta hipótese, seria a das pessoas em geral. Que poderiam ser atingidas pelos disparos deflagrados, se fosse feita uma abordagem policial convencional, ordenando que os criminosos entregassem os fuzis e se rendessem. Não se trataria de legítima defesa do próprio agente estatal. Porque, neste contexto, este agente estatal estaria posicionado a uma distância razoável, longe destes criminosos. Circunstância que por si só, já lhe colocaria em uma situação satisfatoriamente segura, naquele momento.
Sendo juridicamente sustentável, também, o emprego da legítima defesa de forma PREEMPTIVA. Dentro de uma concepção mais ampla, que faz a diferenciação entre guerra justa e injusta, como sustentado por Michael Walzer, na obra “Just and Unjust Wars” (New York: Basic Books – 2 ed., 1992). Para quem, em suma, a guerra preemptiva estaria baseada em fatos reais e irrefutáveis (hard evidence) reveladores da iminência de um ataque. Enquanto a guerra preventiva, seria destinada a impedir o surgimento do próprio risco iminente. Ou seja, teria por finalidade debelar o risco, antes mesmo da efetiva materialização da possibilidade do ataque.
A iminência do ataque, neste caso, seria a constatação de que, criminosos fortemente armados, e flagrados no seu “território” (comunidades ou regiões onde atuam), dificilmente aceitariam o comando da Autoridade Pública para se renderem. Pelo contrário, o que a mídia vem noticiando quase que diariamente, é exatamente o oposto. Meliantes resistindo com ferocidade e tentando repelir a atuação dos Agentes das Forças de Segurança. E somente se rendendo quando feridos, ou quando a fuga se torna completamente inviável. Apesar de ser um conceito mais utilizado na esfera das relações internacionais (especialmente no que se refere a ataques contra alvos seletivos), nada impede que seja internalizado, e passe a subsidiar a atuação do Estado quando do enfrentamento desta modalidade criminosa.
É muito diferente, por exemplo, a decisão sobre a realização do “tiro de comprometimento” em gerenciamento de crises que envolvam reféns. Nestes cenários, existe margem para que o “negociador” policial tente estabelecer um diálogo com o criminoso, de maneira a que o possa convencer de que a rendição é a melhor solução. Este contexto simplesmente não se aplica aos cenários de conflitos de maior intensidade, que são encontrados em várias localidades dominadas por facções criminosas.
Portanto, tanto pelo ângulo do “estrito cumprimento do dever legal”, como pelo da “legítima defesa de terceiro” ou da “legítima defesa PREEMPTIVA”, estaria amparado pela lei a neutralização daquele que estivesse portando fuzil no teatro de operações da missão que está sendo executada. Pois se estaria dando cumprimento, em última análise, ao primado constitucional da segurança pública, enquanto garantia fundamental de todos.
Esta decisão final, de neutralizar a distância, com o emprego de um “tiro de comprometimento”, deve ser deixada exclusivamente para os agentes que estejam diretamente engajados na missão. Que terão melhores condições de avaliar todo o cenário.
Estes profissionais são altamente qualificados, e geralmente atuam em dupla: Atirador de Precisão ou sniper que efetua o disparo, e o Observador ou spotter que ajuda a identificar o alvo, medir a distância, direção do evento e outros fatores. Tornando praticamente nula a possibilidade de serem cometidos equívocos no que se refere a identificação dos alvos.
Além destes aspectos legais, outro fator importante a ser considerado, é o caráter de DISSUSÃO desta medida. Atualmente, é comum criminosos serem vistos circulando livremente portando fuzis e outros armamentos.
Com o anúncio de que estes criminosos poderão ser neutralizados sem aviso, sem que recebam uma ordem para se renderem, certamente causará temor. E contribuirá para coibir que transitem sem receio nas regiões onde estas associações e organizações criminosas, ou milícias atuam.
Finalizando, é de fácil constatação de que muito mais que modificações legislativas, faz-se necessário a mudança de paradigmas acerca da atuação (regras de engajamento) dos Agentes das Forças de Segurança.
Os mecanismos legais em vigor já permitem a adoção destas providências de enfrentamento da criminalidade, apesar de que podem ser aperfeiçoados para estas finalidades. Porém, se não houver a mudança de mentalidade das demais instituições estatais responsáveis pela investigações e julgamentos, pouco (ou quase nada) se conseguirá avançar nesta aresta de combate ao crime.
E o que é pior, podendo gerar pesadas responsabilidades legais para todos aqueles agentes estatais que tiverem participado destas operações, nas quais tenham sido empregado o “tiro de comprometimento”.